
Esse não era para ser o primeiro post sobre Paris, afinal visitei ateliers, fábricas, museus e a Première Vision; mas como cheguei em casa ontem e precisei organizar os materiais do doutorado, pensei em unir os temas por aqui.
Ao selecionar um capítulo do livro "A Estetização do Mundo", de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, senti uma inspiração, uma vontade de escrever e refletir sobre esse tema com vocês, e então trouxe essa conversa para cá, inaugurando a nova categoria do blog chamada "Cahiers".
Não sou fã de estrangeirismos, mas, como recém-chegada de Paris, escolhi esse nome como uma homenagem à língua cujos estudos sociológicos e filosóficos da moda são publicados. Afinal, Paris é o berço da moda como a conhecemos e consumimos hoje. Assim como a palavra "moulage", que não tem tradução, o título dessa categoria também será mantido, pois "cahiers" significa cadernos.
Este será meu caderno aberto, meus esboços para a minha tese, onde compartilharei meus estudos de moda, reflexões baseadas em leituras e trechos de livros — um espaço mais acadêmico que gostaria de ver explorado na moda.
Mas vamos ao tema: Ao ler sobre as figuras inaugurais do capitalismo artístico, no segundo capítulo do livro, reflito sobre a antiga batalha entre o artesanal e o industrial. Apesar dos esforços de pensadores, acabamos sucumbindo à era industrial capitalista. É intrigante notar como a IA tem avançado de forma implacável nesse cenário, e a história ainda nos apresenta duas escolhas: ceder ou resistir.
Os que resistiram, verdadeiramente, fizeram história e estão representados em museus e livros. Por outro lado, aqueles que cederam surfarão a onda e acumularão fortunas, mas qual será seu legado?
Ao abordarmos a questão do legado, percebemos como a Alta Costura ainda se nutre desse patrimônio nos dias atuais. Esse tema se mantém sempre relevante, embora, em algumas ocasiões, possa parecer quase utópico. Como Lipovetsky aponta em sua análise dos movimentos ao longo das décadas, essa batalha por significado e autenticidade continua a ser travada, refletindo a constante tensão entre a tradição e a inovação na moda.
"O mundo industrial, totalmente entregue à sua nova potência, se desviou amplamente, como vimos, da criação artística: ele se contenta com imitar o artesanato, utilizando materiais substitutos que permitem a produção em série a custo mais baixo. No entanto, essa lógica vai logo suscitar uma ampla reflexão crítica. No decorrer da segunda metade do século XIX, em face dos prejuízos estéticos provocados pelo reinado da máquina moderna, duas grandes correntes de pensamento se enfrentam." (página 161)
PARA REFLETIR:
Autenticidade x Imitação:
Como a indústria se apropria do artesanato, há uma discussão sobre o que constitui a autenticidade na criação artística. A imitação do artesanal está realmente contribuindo para a arte ou apenas diluindo seu valor?
Nota: Caso de falsificação interna na Hermès https://www.thefashionlaw.com/an-inside-job-the-2012-counterfeit-bust-that-put-hermes-own-employees-under-the-microscope/
Impacto Estético da Modernidade:
Quais são os prejuízos estéticos causados pela predominância da produção em massa? Como a beleza e a expressão artística mudaram com a ascensão da máquina moderna?
Nota: A indústria da moda e a epidemia do esgotamento https://www.voguebusiness.com/fashion/debunking-the-dream-can-fashion-cool-its-burnout-culture-success-survey
"À medida que a superprodução empurra a indústria da moda para o excesso e a crise econômica global aperta as equipes, a lacuna entre as expectativas dos funcionários e a realidade está crescendo, e muitos retratam um padrão de desilusão e pressão insustentável. A pesquisa 'Sucesso na Moda' da Vogue Business procurou responder a duas perguntas-chave: o que é necessário para alcançar um certo nível de sucesso na moda e o que é necessário para se manter feliz nesse nível? As respostas revelaram três fatores principais que tornam uma pessoa mais suscetível ao esgotamento: a maneira como sua identidade se cruza com as pressões que você experimenta no trabalho, o senso de propósito ou impacto que você deriva do seu trabalho e a maneira como você estrutura seu tempo e estilo de vida em torno do seu trabalho. Os anos desde o início da pandemia só aumentaram as taxas de esgotamento, à medida que os pedidos de moda para manter um ritmo mais realista caíram no caminho, e o calendário da moda foi retomado com força total."
Correntes de Pensamento no Século XIX:
Quais eram as duas grandes correntes de pensamento que surgiram em resposta à industrialização? Como essas correntes influenciaram a arte e a moda da época, e quais continuam relevantes hoje?
Nota: Essas correntes de pensamento, embora surgidas em um contexto específico, continuam a influenciar a arte e a moda contemporâneas, enfatizando a interação entre estética, emoção e questões sociais.
Romantismo
Enfatizava a emoção, a individualidade e a conexão com a natureza, como uma reação aos rigores e à desumanização da Revolução Industrial. Era uma busca por liberdade criativa e expressão pessoal.
Influência na Arte e Moda: Na arte, os românticos celebravam a beleza e a profundidade da experiência humana, explorando temas como a natureza, a fantasia e a nostalgia. Na moda, isso se refletiu em roupas mais elaboradas e ornamentadas, com silhuetas que evocavam um senso de drama e romantismo, frequentemente usando tecidos ricos e detalhes elaborados.
Relevância Atual: O Romantismo permanece relevante hoje na busca por autenticidade e individualidade nas criações artísticas e de moda. Movimentos contemporâneos frequentemente exploram a emoção e a narrativa pessoal, inspirando designers que buscam contar histórias por meio de suas coleções.
Realismo
Surgiu como uma resposta ao idealismo romântico, focando na representação precisa e honesta da vida cotidiana, especialmente das classes trabalhadoras. Era uma crítica às condições sociais e econômicas geradas pela industrialização.
Influência na Arte e Moda: Na arte, os realistas retratavam pessoas comuns e as realidades da vida urbana e rural de maneira despretensiosa, abordando questões sociais e políticas. Na moda, o Realismo se manifestou em estilos mais práticos e funcionais, adaptados às necessidades do dia a dia, priorizando conforto e utilidade sobre a ornamentação excessiva.
Relevância Atual: O Realismo é pertinente hoje ao abordar temas de inclusão, diversidade e crítica social. Na moda, essa abordagem se reflete em práticas sustentáveis e na busca por funcionalidade, representando diferentes corpos e estilos de vida, promovendo um sentido de responsabilidade social entre os designers.
A Função do Artesanato:
Qual é o papel do artesanato na sociedade contemporânea, especialmente quando comparado à produção industrial? Ele deve ser visto como um ato de resistência?
Nota: Hoje, os artesãos são politicamente conscientes, atuando como testemunhas históricas e inovadores. Eles estão engajados na economia circular e exploram novos registros de expressão criativa. Eles são ativos nas mídias sociais, definindo novos estilos de vida e propondo novas escolhas. https://paris.premierevision.com/content/craft-manifesto
Sustentabilidade e Ética:
Como a produção em série utilizando materiais substitutos impacta questões éticas e sustentáveis na indústria da moda e nas artes em geral?
Nota: Ver anotações de To Dye For
Relação entre Tecnologia e Criatividade:
De que forma a tecnologia pode tanto enriquecer quanto empobrecer a criatividade no processo de criação artística? Como encontrar um equilíbrio?
Nota: Desenvolver, ver Deluxe de Dana Thomas
Evolução do Movimento Artístico:
Como a luta contra a lógica industrial influenciou o surgimento de movimentos artísticos e de design ao longo da história, e como isso se reflete na prática atual?
Nota: Ver Arts & Crafts, Art Noveau, Bauhaus...
"William Morris e o movimento Arts & Crafts também defendem a ideia de uma volta à dignidade do trabalho artesanal e da obra bem-feita. Desejando reconciliar a arte e a vida cotidiana, Morris denuncia o dogma da hierarquia das artes, rejeita a oposição entre a “Grande Arte” e as “artes menores”, proclama a igual dignidade de todas as artes, procura elevar o artesão ao nível de artista, convida os artistas a se interessarem pelos domínios do artesanato. Foi na renovação das artes decorativas, na fusão da arte e do artesanato que se buscou a solução para os estragos estéticos da mecanização moderna. Rejeitando uma arte destinada a uma minoria, Morris considera que “nenhuma obra de arte é obra de arte se não for útil”. Nessa perspectiva, as artes aplicadas são carregadas de uma dimensão utópica: construir um mundo novo para o povo, fazer a arte entrar na vida de todos, realizar um ambiente cotidiano de qualidade em tudo e para todos. Esse programa será reivindicado pelo movimento Arts & Crafts assim como pelo Art Nouveau. Com os prejuízos da civilização maquinista surgiu a utopia de uma sociedade estética democrática. A segunda corrente é inaugurada por Henry Cole, que reúne a partir de 1850 um grupo de pensadores e de artistas reformadores cuja ideia não é nem rejeitar a mecanização nem voltar a métodos artesanais, como preconizam Ruskin, William Morris e os inspiradores do Arts & Crafts, mas, ao contrário, promover a aliança da arte com a indústria, “demonstrar a existência de um laço estreito entre as belas-artes e a indústria”. Contra os excessos da mecanização, trata-se de inventar uma linguagem que seja adequada à Revolução Industrial e que não reproduza os antigos modos de concepção artística em vigor no artesanato.
Na Première Vision, o tema central abordava a ideia de resgate, representando a resistência em tempos de aceleração constante. Hoje, debatemos o artesanal, mas é crucial observar que a indústria, que claramente se alimenta do capitalismo feroz, ainda promove "inovações" através de matérias-primas quimicamente desenvolvidas.
É evidente que existem duplexidades nesse cenário, e aqui surge outra reflexão: até que ponto essa valorização do artesanal não é uma estratégia de marketing dos grandes conglomerados?
Para os artesãos, esse resgate é uma questão de sobrevivência em um mercado cada vez mais desumanizado. No entanto, quando esse mesmo movimento é cooptado por grandes corporações, ele se torna uma extensão mascarada da industrialização, conforme salienta Lipovetsky. Portanto, é fundamental questionar a autenticidade dessas iniciativas e considerar se realmente representam uma mudança significativa ou se são apenas uma fachada que permite à indústria manter seu controle sobre o mercado, ao mesmo tempo em que a imagem de sustentabilidade e valorização do artesanal é promovida.
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Deluxe. Como O Luxo Perdeu O Brilho - Dana Thomas https://amzn.to/3XdAL0x
E foram essas as anotações que estavam destinadas a um arquivo no Word. Se você leu, ficaria muito grata se pudesse me dar um feedback sobre elas diretamente no meu perfil do Instagram, dizendo se fez sentido para você! Um beijo e até a próxima!