top of page

DIÁRIO DO DOUTORADO: PESQUISADORA NA ITÁLIA

ree

Eu já havia escrito e estava salvo no rascunho os meus primeiros dias aqui em Lecce, mas como tem muitas perguntas sobre o doutorado em si, desde a pesquisa e disciplinas que eu vinha fazendo no Brasil, resolvi fazer um post introdutório, usando algumas perguntas da caixinha do Instagram e também as que recebo no direct.


Essa é a minha segunda experiência de intercâmbio morando fora do país. A primeira foi em Portugal, quando participei do programa Erasmus pela universidade onde fiz a graduação em Tecnóloga em Moda e Estilo, a UCS.


Depois, fiz cursos livres em Paris, especialmente de moulage. E agora retorno à Itália como pesquisadora do doutorado, em um programa de doutorado sanduíche, realizado entre a Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e a Università del Salento (UniSalento), em Lecce, na região da Puglia.


Vou tentar responder perguntas que mais se repetem, porém pretendo continuar com esse formato de post por aqui, além de compartilhar minhas rotinas de estudos aqui no blog. Vamos lá?


“Qual é a sua área de doutorado?”


Meu doutorado está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos (PPG-PSDH), com uma pesquisa que se insere na linha de Direitos Humanos, Sustentabilidade e Sociedade. O título da tese até o presente momento é: “Governança Socioambiental na Indústria da Moda: uma análise comparada Brasil-União Europeia à luz do Constitucionalismo Ecológico e da Teoria do Decrescimento.”


De forma simples, estudo como o direito pode repensar o modelo de desenvolvimento da indústria da moda, considerando que as leis e políticas públicas ainda são estruturadas dentro de uma lógica de crescimento infinito o que se mostra incompatível com os limites ecológicos do planeta.


A pesquisa é comparada porque analisa tanto o contexto brasileiro quanto o europeu, especialmente sob a ótica das políticas climáticas e ambientais da União Europeia. O objetivo é compreender como o direito pode servir não apenas como instrumento de regulação, mas também de transformação cultural, incorporando princípios como suficiência, reparação e responsabilidade socioambiental.


“Por que na Itália?”


A escolha da Itália e, mais especificamente, da Università del Salento, se deu por uma série de fatores, mas principalmente porque o meu orientador aqui, o professor Michele Carducci, é uma referência internacional nos estudos de Constitucionalismo Ecológico e Direito Climático.


Conheci sua obra ainda no início da minha pesquisa no Brasil, quando comecei a buscar autores que discutissem a transformação do Direito a partir da crise ecológica. O professor Carducci é uma das vozes mais consistentes nesse campo: ele propõe uma leitura do Direito Constitucional não apenas como instrumento do Estado, mas como um fenômeno terrestre, ou seja, um direito que reconhece a interdependência entre seres humanos e natureza.


Essa abordagem ressoou profundamente com o que eu já vinha desenvolvendo em relação à moda e sustentabilidade. Afinal, pensar o direito de forma “terrestre” é também repensar o design, a produção e o consumo sob uma lógica de limites e não de excessos.


Além disso, a UniSalento tem um perfil que dialoga muito com o meu projeto. É uma universidade situada no sul da Itália, que abriga centros de pesquisa dedicados às ciências políticas, ao direito comparado e às políticas climáticas europeias. Lecce, embora pequena, é um polo acadêmico em crescimento e oferece um ambiente propício para uma pesquisa interdisciplinar como a minha que transita entre direito, moda, economia ecológica, filosofia política e estudos culturais.


Outro ponto decisivo foi o caráter comparado da minha tese. A Itália, enquanto país-membro da União Europeia, é parte ativa dos debates sobre o Pacto Ecológico Europeu (European Green Deal), as políticas de transição justa e os marcos jurídicos de sustentabilidade. Estar aqui me permite acompanhar de perto essas discussões, entender como elas são implementadas na prática e comparar com o contexto brasileiro, que enfrenta desafios distintos, mas igualmente urgentes.


Além da orientação acadêmica, a Itália foi uma escolha natural por um motivo igualmente importante: ela é um dos pilares do sistema global da moda.


Mais do que o berço do design e da tradição artesanal, a Itália ocupa hoje um papel central dentro da indústria do luxo contemporâneo.


Enquanto Paris dita o ritmo das passarelas e Londres impulsiona a experimentação conceitual, é na Itália que a moda realmente acontece, seja na produção, na excelência dos materiais e no savoir-faire que sustenta o luxo silencioso das grandes maisons.


Os ateliês italianos são responsáveis por uma parte significativa da produção do prêt-à-porter das maiores marcas do mundo, incluindo casas francesas e internacionais. É aqui que são confeccionadas as coleções de grifes como Dior, Saint Laurent, Balenciaga, Louis Vuitton e Chanel, especialmente as linhas que exigem alta precisão técnica, alfaiataria, couro e acabamentos manuais.


O mesmo vale para os acessórios de luxo bolsas, sapatos e cintos. A tradição italiana no trabalho com couro é incomparável. A Itália abriga os principais polos de produção artesanal, onde técnicas transmitidas há gerações continuam sendo aplicadas mesmo dentro de cadeias industriais globalizadas.


Quando se fala em luxo sustentável, portanto, é impossível ignorar o papel da Itália. O país combina uma herança artesanal fortíssima com políticas industriais que têm investido em materiais regenerativos, rastreabilidade e circularidade. Muitas das inovações em couro vegetal, tecidos reciclados e processos de baixo impacto nasceram em pequenas oficinas italianas antes de se tornarem tendência global.


Essa conexão entre tradição e inovação, estética e ética, é exatamente o ponto onde minha pesquisa se insere. Estar na Itália significa observar de perto o diálogo entre o sistema produtivo e o sistema jurídico, entender como a governança socioambiental se materializa não apenas nas leis, mas nas práticas concretas, nos objetos, nas fábricas, nos tecidos, nas mãos de quem faz.


A escolha pela UniSalento também reflete um desejo de olhar o país de outro ângulo. Em vez dos grandes centros da moda, como Milão ou Florença, Lecce está no sul, uma região onde o tempo tem outro ritmo, e onde a reflexão sobre sustentabilidade e desigualdade ganha camadas sociais e territoriais muito mais complexas.


Por isso, estudar em Lecce é também um exercício de deslocamento intelectual, geográfico e simbólico, além de um sonho antigo. Mas há também um motivo mais subjetivo e talvez o mais importante: a Itália sempre foi, para mim, um lugar onde o pensamento e a estética caminham juntos. É um país que valoriza a forma, a história, a materialidade das coisas. E acredito que estudar aqui, no coração do Mediterrâneo, me ajuda a compreender melhor como a beleza pode ser também uma forma de ética, algo que atravessa tanto o design quanto o direito.


“E por que relacionar o direito com a moda?”


Porque a moda é uma das expressões mais complexas da nossa civilização, já que ela traduz tempo, cultura, poder e desejo. Ao mesmo tempo, é um dos setores que mais impactam o meio ambiente e reproduzem desigualdades sociais.


Quando comecei a lecionar e a trabalhar com consultoria de marcas, percebi que falar sobre sustentabilidade na moda exigia muito mais do que discutir tecidos orgânicos ou reciclagem. Era preciso compreender as bases jurídicas e econômicas que sustentam esse modelo de produção e consumo.


“Como funciona o doutorado sanduíche?


O doutorado sanduíche é uma modalidade de pesquisa internacional, em que o doutorando mantém vínculo com a sua universidade de origem (no meu caso, a UCPel, no Brasil), mas realiza uma parte significativa da pesquisa em uma instituição estrangeira parceira aqui, a UniSalento.


Durante o período no exterior, o estudante é orientado por um professor local (meu orientador aqui é o professor Carducci) e segue um plano de estudos que complementa o projeto desenvolvido no país de origem.


Essa vivência é valiosa não apenas pelo conteúdo acadêmico, mas pela troca cultural e epistemológica. Em Lecce, por exemplo, estou cursando disciplinas que ampliam meu repertório sobre direito climático, epistemologia e política constitucional comparada, temas fundamentais para compreender como o pensamento jurídico europeu tem enfrentado as mudanças climáticas e as crises ambientais.


“Como é estudar na Itália?”


É uma experiência profundamente rica. Lecce é uma cidade do sul, banhada pelo Mediterrâneo e marcada pela arquitetura barroca e pela hospitalidade italiana.


As aulas são densas, com uma abordagem muito teórica, e a interdisciplinaridade é constante. Os professores da UniSalento tratam o direito não apenas como técnica, mas como linguagem e cultura, o que se conecta muito com a minha maneira de pensar a moda.


Aqui, o direito não é ensinado como um conjunto de normas, mas como uma ferramenta de leitura da realidade algo que ecoa diretamente na forma como pretendo escrever minha tese.


Preciso falar italiano para estudar aqui?


Sim, precisa. Na UniSalento, as aulas do doutorado e as atividades do grupo de pesquisa são conduzidas integralmente em italiano. Embora o grupo tenha caráter latino-americano e os temas sejam internacionais, o idioma acadêmico e cotidiano é o italiano, desde as discussões em aula até os artigos e comunicações entre os pesquisadores.


Por isso, recomendo que quem tem o desejo de estudar na Itália invista no idioma antes da chegada.

Saber italiano não é apenas uma exigência prática, mas uma ponte cultural e intelectual: ele permite participar das discussões com profundidade, compreender nuances teóricas e viver plenamente a experiência.


Mesmo que você tenha bom domínio do inglês, ele não substitui o italiano nesse contexto.


O inglês é usado em referências bibliográficas e em comunicações formais entre universidades, mas o dia a dia, acadêmico e social, acontece em italiano.

Aprender o idioma é, portanto, um ato de integração e respeito ao país que te acolhe.


O doutorado sanduíche tem bolsa?


Sim, pode ter, mas depende da modalidade e do convênio.

No Brasil, as bolsas são concedidas principalmente pela Capes, CNPq e Fundações Estaduais. Em alguns casos, universidades estrangeiras oferecem apoio parcial, como auxílio para moradia ou isenção de taxas.

No meu caso, a pesquisa é autônoma e institucionalmente vinculada às duas universidades, o que me dá liberdade para estruturar o cronograma conforme o avanço do trabalho.


Como foi o processo de seleção na Itália?


No meu caso, o processo foi muito mais personalizado do que o modelo brasileiro e também mais relacional.

Tudo começou com uma indicação do meu professor na UCPel, que apresentou o meu projeto à professora assistente do professor Michele Carducci, na UniSalento.

Ela fez uma entrevista comigo, avaliando tanto a coerência teórica da pesquisa quanto o perfil acadêmico e a motivação pessoal para o doutorado sanduíche.


A partir dessa primeira conversa, o projeto foi encaminhado ao professor Carducci, que validou a proposta e me recebeu formalmente como pesquisadora visitante vinculada ao grupo de estudos em Direito Climático e Constitucionalismo Ecológico.


Esse tipo de seleção é bastante comum: o processo não se baseia em provas ou bancas formais, mas em interlocução acadêmica e afinidade intelectual.


Cada convite é, na verdade, uma forma de reconhecimento mútuo entre pesquisadores, mais próximo de uma integração a um grupo de pesquisa do que de uma admissão tradicional.


Depois da aprovação, segui com os trâmites administrativos: envio da documentação traduzida, plano de pesquisa atualizado, comprovantes de vínculo com a universidade brasileira e a formalização institucional do convênio entre a UCPel e a UniSalento. No fim, é um processo que exige muita clareza de propósito e autenticidade acadêmica.


“E como é o cotidiano entre a pesquisa e a vida fora do país?”


O doutorado fora do país é, antes de tudo, uma experiência de autoconhecimento. É sobre aprender a viver com o essencial, adaptar rotinas e transformar a solidão em introspecção produtiva.


Meu dia começa cedo, geralmente com o treino na academia (é o meu momento de equilíbrio físico e mental). Depois, organizo as leituras, as anotações no meu commonplace book, organizo minha alimentação e meu espaço e sigo para a universidade, ou quando não tenho aula ou compromissos com o grupo de pesquisa, aproveito para trabalhar nos meus projetos e atender aos alunos de mentorias ou consultorias.


“Você pretende voltar para o Brasil depois?”


No momento não. Minha filha vem morar comigo e eu vou defender a tese de forma remota. Além do trabalho como pesquisadora aqui, também tenho feito projetos na área da moulage e existem muitas oportunidades estando por aqui.


Posso fazer pós, mestrado ou doutorado sendo tecnólogo?


A dúvida é comum: afinal, quem é tecnólogo também pode fazer pós ou seguir carreira acadêmica? A resposta é simples: sim, pode, mas antes de tudo, é importante reforçar: o curso de tecnólogo é uma graduação reconhecida pelo MEC.


Sendo assim, ele pertence à mesma categoria de nível superior dos cursos de bacharelado e licenciatura, o que significa que o diploma tem validade plena para fins acadêmicos e profissionais.


A diferença está apenas no foco, pois o bacharelado forma com base mais ampla e teórica, enquanto o tecnólogo é mais prático, direcionado ao mercado e mais curto (geralmente de 2 a 3 anos).


Mas em ambos os casos, o egresso é graduado e, portanto, tem direito a cursar pós-graduação, mestrado e doutorado, no Brasil e no exterior.


Mestrado: o primeiro passo na pesquisa


O tecnólogo também pode ingressar em mestrados acadêmicos ou profissionais, desde que o curso tenha reconhecimento do MEC e o candidato apresente um projeto coerente com as linhas de pesquisa do programa.


Aqui o foco já é outro: o mestrado não é apenas uma continuidade da graduação, mas uma imersão no pensamento científico, na escrita e na construção de conhecimento original, ou seja, PRECISA gostar de ler e escrever.


Doutorado: continuidade e aprofundamento


Para o doutorado, a exigência é ter concluído um mestrado stricto sensu, seja ele acadêmico ou profissional.

Ou seja, o caminho natural é:


Tecnólogo → Mestrado → Doutorado.


Uma vez que você conclui o mestrado, não há mais diferença de origem.

O título de doutor (PhD) depende exclusivamente da qualidade do seu projeto e da sua pesquisa.


É perfeitamente possível, por exemplo, um tecnólogo em Design de Moda tornar-se doutor em Direitos Humanos, Políticas Públicas, Arquitetura, Estudos Culturais ou Sustentabilidade, desde que o percurso faça sentido.


E no exterior?


Nos programas internacionais, especialmente na Europa, o sistema é ainda mais flexível.

Universidades na Itália, França, Portugal, Espanha e Reino Unido costumam aceitar candidatos tecnólogos desde que o curso seja reconhecido como higher education degree no Brasil.


Na prática, isso significa que:


  • Você pode cursar Masters (Mestrados) ou Master di I Livello (Especializações) na Itália;

  • Pode ingressar em Mestrados Profissionais em Portugal ou França;

  • E pode, após um mestrado, concorrer normalmente a um doutorado (Dottorato di Ricerca / PhD).



Muitos tecnólogos brasileiros fazem essa trajetória fora do país, especialmente em áreas ligadas à moda, design, inovação, sustentabilidade e branding.


O segredo está na coerência


Mais do que o título do diploma, o que as universidades observam é a coerência da sua trajetória.

Isso significa:


  • Ter clareza sobre por que você quer seguir estudando;

  • Mostrar como a sua experiência profissional te levou a uma pergunta de pesquisa;

  • E evidenciar o que você pode contribuir com o campo.


A interdisciplinaridade é uma força, não um obstáculo.

Profissionais com formações híbridas, ou seja técnica e teórica, costumam propor pesquisas mais criativas, inovadoras e conectadas à realidade.


Ser tecnólogo não é uma limitação, é um ponto de partida. Seu curso te deu uma base prática, e a pós-graduação pode te dar profundidade teórica. O importante é não se prender à ideia de que existe “uma única forma correta” de seguir na vida acadêmica, porque por experiência te afirmo que não existe.


O conhecimento hoje é transversal. A moda conversa com o direito. O design dialoga com a sustentabilidade. A tecnologia cruza com a filosofia. E cada um de nós constrói o próprio caminho entre essas fronteiras.


Se você é tecnólogo e sente o desejo de continuar estudando, vá em frente.

A academia precisa de olhares como o seu: aplicados, criativos e profundamente conectados ao tempo em que vivemos.





pos.png
    bottom of page