A CRIATIVIDADE NA MODA SERÁ AMEAÇADA PELA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL?
- Francys Saleh

- 14 de out
- 5 min de leitura

Um dos maiores desafios contemporâneos da moda é entender o papel da inteligência artificial (IA) sem perder aquilo que torna o setor humano: a criatividade.
Eu sempre falo que a moda é, antes de tudo, uma forma de linguagem que traduz emoções, identidades e culturas.
Ela narra o espírito do tempo e, ao mesmo tempo, o projeta para o futuro. Mas como preservar essa dimensão artística em uma era de algoritmos e automações?
A IA consegue analisar volumes massivos de dados, prever tendências e até gerar imagens e tecidos digitais.
Contudo, o que ela não possui , e talvez nunca possua, é a capacidade de sentir. A moda nasce do olhar, da intuição e da vivência. É uma tradução estética de experiências humanas que não podem ser reduzidas a padrões de dados.
Então, a grande questão não é se a IA substituirá a criatividade, mas como ela poderá coexistir com ela. A criatividade humana envolve algo que escapa à lógica: o erro, o acaso, o gesto imperfeito. E é justamente nesse espaço, o da falha e da sensibilidade, que se revela o verdadeiro poder criativo.
A IA pode nos ajudar a otimizar processos, reduzir desperdícios e até antecipar cenários de consumo, mas cabe a nós decidir qual história queremos contar com a moda.
Essa reflexão é central também para a minha tese, pensar a moda dentro da ótica da governança socioambiental e da teoria do decrescimento: é possível produzir menos, melhor e com mais sentido.
A tecnologia, quando aliada à ética e à estética, pode ser uma ferramenta de desaceleração e não de excesso, um caminho para o que chamo de luxo da coerência.
Nas minhas turmas e mentorias, percebo que formar novos profissionais da moda hoje vai muito além de ensinar técnica. É preciso ensinar pensamento crítico, imaginação ecológica e responsabilidade criativa.
A educação em moda precisa preparar alunos não apenas para criar roupas, mas para reconfigurar sistemas, entender cadeias produtivas, circularidade, impacto ambiental e, claro, o papel da IA nesse contexto.
Não se trata de temer a tecnologia, mas de aprender a usá-la de forma autoral e consciente. Como sempre digo aos meus alunos: a ferramenta não cria nada sozinha. É o olhar humano que transforma informação em forma, dado em desejo e dado técnico em narrativa estética.
Outro ponto essencial é a colaboração entre o humano e o digital. Os futuros criativos da moda não serão apenas estilistas ou programadores, mas mediadores entre mundos.
Feiras que visitei recentemente como a Première Vision, têm mostrado o poder da interdisciplinaridade: designers, engenheiros, artesãos e pesquisadores trabalhando juntos para reinventar materiais, processos e experiências.
ENTRE O ARTESANAL E O TECNOLÓGICO: A IA COMO ALIADA DA SUSTENTABILIDADE
Nesse diálogo entre o artesanal e o tecnológico, a inteligência artificial pode e deve se tornar uma aliada da sustentabilidade. Imagine sistemas capazes de prever o desperdício têxtil antes que ele aconteça, otimizar o uso de recursos naturais ou propor designs regenerativos que devolvam valor à natureza em vez de extraí-lo.
Mais do que automatizar, a IA pode amplificar o gesto humano, permitindo que criadores trabalhem de forma mais consciente, inteligente e emocionalmente conectada com o planeta.
Essa integração entre tecnologia e propósito não é um conceito distante ela já está acontecendo. Durante uma imersão no Vale do Silício (contei tudo aqui nesta categoria do blog), pude ver de perto iniciativas que unem engenharia, moda e sustentabilidade com uma visão profundamente interdisciplinar. Um dos exemplos mais inspiradores foi o da Refiberd, uma startup fundada por um grupo de mulheres engenheiras que decidiu enfrentar de frente a crise global do desperdício têxtil.
A Refiberd nasceu com o propósito de aplicar a inteligência artificial à construção de uma economia 100% circular na moda. Sua equipe reúne cientistas de dados, engenheiras têxteis e pesquisadoras vindas de centros como a Carnegie Mellon University, UC Berkeley e Universidade de Viena, uma combinação rara entre o pensamento científico e o olhar criativo. A tecnologia desenvolvida por elas é capaz de identificar e separar automaticamente tipos de fibras em resíduos têxteis, facilitando a reciclagem em escala industrial e transformando o que antes era lixo em matéria-prima de alta qualidade.
O mais interessante é perceber que esse tipo de inovação não busca substituir o fazer humano, mas redefinir os sistemas de produção. A IA entra aqui como mediadora: ela lê, organiza e traduz informações que o olhar humano sozinho não daria conta de processar e, a partir disso, abre espaço para novas possibilidades criativas e ecológicas.
O trabalho da Refiberd tem atraído o apoio de iniciativas globais como a Fashion for Good, Google for Startups e a H&M Foundation, que apostam nessa convergência entre tecnologia limpa e design regenerativo. Trata-se de uma nova geração de empresas que enxergam a sustentabilidade não como um “diferencial de marketing”, mas como um eixo estrutural de inovação e beleza.
Essa visão conecta-se diretamente ao que defendo em minhas aulas e pesquisas: a moda do futuro será aquela que compreender o impacto de cada escolha, do algoritmo ao tear, do dado ao desenho. Unir a precisão da IA à intuição humana é o que pode transformar o ato de criar em um gesto político, poético e regenerativo.
ESTUDOS DE CASO E INSPIRAÇÕES
Algumas marcas já trilham esse caminho de maneira inspiradora. A Stella McCartney é pioneira em unir biotecnologia e estética, desenvolvendo tecidos com micélios e algoritmos que mapeiam pegadas ecológicas.A Adidas, com suas impressoras 3D e linhas de economia circular, mostra como o design assistido por IA pode servir à durabilidade.
No fundo, a discussão sobre IA na moda é uma discussão sobre o sentido da beleza no século XXI. Se a modernidade transformou o luxo em espetáculo, talvez o nosso tempo esteja nos convidando a um retorno à beleza essencial, à moda que emociona, que questiona, que propõe. Como afirma Lipovetsky, “a estética é hoje uma forma de ética”.E eu complemento: a sustentabilidade é a nova linguagem da beleza.
A verdadeira inovação será aquela capaz de equilibrar performance e poesia, eficiência e expressão.O desafio está em transformar tecnologia em ferramenta de sensibilidade, e não em substituição da emoção.
Então concluo com uma reflexão: A moda do futuro não será apenas digital sim reflexiva. Uma moda que usa a IA para criar com mais consciência, para reduzir impactos, para repensar a relação entre consumo e criação. Mas, acima de tudo, uma moda que celebra o gesto humano: o olhar, o toque, a intuição, o tempo.
É essa visão que me move entre o imersões nos Estados Unidos, pela Europa, entre o atelier e a universidade, entre o dado e a poesia. Que possamos continuar essa conversa, juntos, construindo uma moda que pense, sinta e inspire. Porque, no fim, o maior ato de inovação é continuar sendo humano.
















