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CAHIERS: A MORTE DOS DETALHES

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Já é de praxe, quando pensamos em moda, buscarmos nas décadas de 1920, 1930 e 1940 peças que carregam modelagens ousadas e acabamentos utilitários e muito bem elaborados. É como se cada prega, cada botão, cada linha de costura fosse um manifesto de atenção, quase um gesto de respeito pelo corpo e pela vida útil da roupa.


Quem trabalha com moda sabe bem: visitar arquivos, manusear peças vintage ou folhear livros antigos é reencontrar o detalhe, esse território quase perdido em meio à aceleração da indústria contemporânea.


Recentemente, ao percorrer uma exposição em Paris no Palais Galliera, me deparei com roupas de esqui do início do século XX. Uma delas apresentava um sistema de abotoamento engenhoso, ao mesmo tempo funcional e estético, que me fez parar diante da vitrine com uma reverência involuntária.


Aquele detalhe, tão pequeno, dizia muito: havia pensamento, intenção e permanência no gesto de quem a criou. Nada ali parecia descartável. Ao contrário, cada ponto de costura carregava uma ideia de durabilidade, quase um pacto silencioso entre criador e usuário.


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Então, recentemente enquanto rolava o feed do Instagram, me deparei com um reels que chamou minha atenção. Nele, Elliot Dupray, um colecionador de peças vintage e de coleções "archive", compartilhou detalhes fascinantes de seu acervo de Alexander McQueen. Ele mostrou como alguns desses detalhes, tão marcantes na época, estão se perdendo com o tempo, especialmente agora, quando muitas marcas de designers disruptivos e inovadores foram adquiridas por conglomerados maiores e mais tradicionais.


No vídeo ele também abordou uma questão importante que aparece no livro da Dana Thomas (autora que eu sempre indico e que sou apaixonada pelo trabalho) que chama Gods and Kings: The Rise and Fall of Alexander McQueen, que é a transição que muitos desses estilistas enfrentaram, tanto ao trocar de contrato quanto ao passar por fases de mudança criativa. Nessa época de transição, muitas vezes ocorre uma espécie de “morte” da criatividade, um momento em que as raízes e a essência do designer parecem se perder diante de interesses comerciais mais massivos. É como se, ao serem absorvidos por grandes grupos, esses nomes icônicos perdessem sua autonomia e sua capacidade de inovar de forma genuína.


Vou deixar aqui o reels para vocês assistirem e refletirem sobre essa questão que tanto mobiliza o universo da moda e da criatividade.: https://www.instagram.com/reel/DGbzm-yJItW/?igsh=dTR0bG04NDlhaTA3


Mas o que vemos hoje, em boa parte da indústria, é a necessidade de adequar-se a um mercado que transformou a moda em pura mercantilização. Como bem analisa Gilles Lipovetsky em O Império do Efêmero, a moda deixou de ser apenas um sistema de distinção social para tornar-se um motor incessante de consumo, sustentado pelo ritmo acelerado das coleções e pela lógica da obsolescência. O detalhe, nesse cenário, não encontra lugar: ele é caro, exige tempo, demanda mão de obra especializada. E tempo, sabemos, é o recurso mais escasso de nossa era.

Walter Benjamin, no Livro das Passagens, já pressentia essa tensão entre aura e reprodutibilidade. O detalhe minucioso, artesanal, carregado de tempo, é parte daquilo que confere aura a uma peça de moda.


Ao perdermos o detalhe, perdemos também essa aura, substituída por imagens velozes que se sucedem em nossos feeds digitais. Se o século XIX se encantava com as passagens de ferro e vidro de Paris, onde a mercadoria se apresentava como espetáculo, nós hoje desfilamos por passagens virtuais onde a roupa já nasce destinada ao descarte. E sobre as passagens, falei nesse post aqui.



Roland Barthes, em O Sistema da Moda, nos lembra que a moda é antes de tudo linguagem. O detalhe é uma espécie de fonema dessa linguagem, um sinal pequeno, mas carregado de significado. Quando uma casa de moda borda à mão uma flor em seda ou cria um fecho invisível que se encaixa com perfeição, não está apenas resolvendo uma função técnica: está escrevendo uma frase no tecido, comunicando uma intenção cultural. A perda do detalhe equivale, nesse sentido, a uma perda de vocabulário ficamos com uma moda mais pobre, de frases curtas e repetitivas.


Caroline Evans, em Fashion at the Edge, vai além e mostra como o detalhe pode ser subversivo. Em McQueen, por exemplo, os acabamentos rasgados, as costuras expostas, os bordados perturbadores não são apenas ornamentos: são metáforas visuais de violência, beleza e morte. O detalhe, nesse caso, é também pensamento crítico, capaz de tensionar o espectador e transformar a passarela em palco de reflexão.


Valerie Steele, em seus inúmeros trabalhos de curadoria e crítica, insiste no papel dos museus como guardiões desses detalhes. Não apenas os grandes nomes, mas também roupas comuns, de esportes, de trabalho, carregam invenções discretas que nos contam histórias sobre tecnologia, gênero, corpo e sociedade. Ao caminhar pelos corredores de exposições em Paris, senti exatamente isso: os detalhes não são apenas belas soluções estéticas; eles são arquivos vivos de pensamento, testemunhos de um tempo em que a moda não era descartável, mas inscrita em uma história maior.


O vídeo do Instagram, portanto, toca em algo que é mais do que nostalgia. A morte do detalhe não é apenas a perda de um “capricho” artesanal, mas um sintoma de como a lógica industrial e financeira se impôs sobre a moda, reduzindo seu poder de memória e sua capacidade de criar aura. É a mesma lógica que transforma a alta-costura em estratégia de marketing para conglomerados e que vende a ilusão de autenticidade enquanto acelera o consumo.


Ainda assim, resistências existem. Em ateliers independentes, em movimentos de slow fashion, na prática de designers que insistem no detalhe como ato político, reencontramos o valor do gesto minucioso. Como Benjamin nos lembraria, o flâneur é aquele que passeia devagar, que olha com atenção para aquilo que a multidão apressada não percebe. Talvez seja esse o convite da moda hoje: resistir ao fluxo acelerado e reaprender a olhar para o detalhe, não como luxo obsoleto, mas como forma de pensamento crítico e de memória cultural.


Paris, com suas bibliotecas e museus, me ensinou isso mais uma vez. Entre uma roupa de esqui com botões engenhosos e um vestido de McQueen bordado à exaustão, descobri que o detalhe é mais do que estética: é um lembrete de que a moda só se mantém relevante quando é capaz de cultivar memória e emoção.


E aqui cabe a pergunta que nos resta: conseguiremos resgatar o detalhe em uma era que parece querer apagá-lo?


Enquanto isso, sigo flanando, seja por livros, arquivos, exposições, passagens reais e digitais. Porque, no fundo, é no detalhe que a moda floresce como arte, resistência e memória.



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